Nos últimos anos, tecnologias capazes de registrar, interpretar e até modular a atividade cerebral deixaram o campo da ficção científica para entrar na rotina de pacientes, empresas e, cada vez mais, de consumidores comuns. De implantes cocleares e estimulação cerebral profunda a tiaras, fones e óculos “smart” que prometem medir foco, estresse ou humor, a neurotecnologia se consolidou como uma das fronteiras mais sensíveis da inovação.
Foi diante desse cenário que a Unesco aprovou, em novembro de 2025, a primeira recomendação global sobre a ética da neurotecnologia. O documento, adotado na 43ª Conferência Geral, estabelece diretrizes para que essas ferramentas contribuam para a saúde e o bem-estar sem violar direitos humanos fundamentais, como privacidade mental, liberdade de pensamento e integridade psicológica.
O que está em jogo quando o cérebro se conecta à tecnologia
Neurotecnologia é o conjunto de dispositivos e técnicas que medem, monitoram ou modificam o sistema nervoso. Isso inclui desde eletrodos cerebrais usados no tratamento de Parkinson e epilepsia até interfaces cérebro-computador que permitem a pessoas com paralisia moverem um cursor ou uma prótese com o pensamento.
Mas a mesma lógica que permite restaurar funções perdidas pode, se mal regulada, abrir espaço para usos preocupantes. A Unesco alerta para alguns riscos centrais:
- Privacidade mental e “neurodados”: registros de atividade cerebral podem revelar estados emocionais, preferências e padrões de atenção – uma espécie de “dado íntimo máximo”. Sem regras claras, essas informações podem virar mercadoria em mercados de dados já pouco transparentes.
- Liberdade de pensamento e manipulação: ao combinar leitura de sinais neurais com algoritmos, abre-se a possibilidade de influenciar decisões, direcionar comportamentos ou monitorar produtividade no trabalho de forma invasiva.
- Identidade e autonomia: se dispositivos passarem a sugerir ou automatizar respostas emocionais e cognitivas, a linha entre “eu decidi” e “o sistema decidiu por mim” pode se tornar nebulosa.
- Uso em crianças e adolescentes: cérebros em desenvolvimento são especialmente vulneráveis. A recomendação pede extrema cautela – e, em muitos casos, desaconselha usos não terapêuticos nessa faixa etária.
- Aplicações militares e de segurança: relatórios da ONU já discutem o impacto de neurotecnologias em contextos de defesa, monitoramento ou interrogatório, o que acende alertas adicionais para o direito internacional e o risco de novas formas de coerção.
A resposta da Unesco: um “cinturão de segurança” ético
A recomendação aprovada pela Unesco não é uma lei, mas um padrão normativo global: um texto de referência para que cada país crie ou atualize suas próprias legislações. Entre os principais pontos, estão:
- Reconhecer neurodados como dados pessoais sensíveis, com proteção reforçada, similar ou superior à de dados de saúde.
- Proibir a coleta de dados neurais por coerção, manipulação ou “consentimento disfarçado”, como condicioná-la à permanência no emprego ou ao acesso a serviços essenciais.
- Exigir transparência e evidência científica para produtos que prometem aumentar desempenho cognitivo, atenção ou bem-estar emocional, especialmente em ambiente escolar e corporativo.
- Estabelecer salvaguardas específicas para o uso em crianças, adolescentes, pessoas com transtornos mentais e outros grupos vulneráveis.
- Garantir que a neurotecnologia não seja usada para manipulação política, discriminação ou controle social.
Na prática, a recomendação indica que governos devem revisar suas leis de proteção de dados, saúde e trabalho para incorporar esse novo “território sensível” que é o cérebro conectado.
Benefícios reais, riscos concretos
Ao mesmo tempo, a mensagem da Unesco não é de frear a inovação, mas de guiá-la. O documento destaca o potencial transformador da neurotecnologia em áreas como:
- terapias para Parkinson, epilepsia e depressão resistente;
- reabilitação de pacientes com lesão medular ou sequelas de AVC;
- próteses neurais que devolvem comunicação ou mobilidade;
- novas formas de acessibilidade digital para pessoas com deficiência.
O desafio é justamente permitir que essas aplicações floresçam sem abrir a porta para um “velho oeste” de dispositivos comerciais, aplicações militares obscuras ou vigilância invisível em escolas e empresas.
Brasil na conversa global
A Agência Brasil destacou que a recomendação foi aprovada em Samarcanda, Uzbequistão, chamando a atenção para o fato de que dezenas de milhares de pessoas já usam neurotecnologias no mundo – muitas sem plena consciência de quais dados estão sendo coletados e como serão usados.
O texto também aponta caminhos específicos para os países: criar marcos regulatórios nacionais, formar comissões de ética, estimular a participação da sociedade civil e garantir que os benefícios da neurotecnologia não fiquem restritos a uma minoria com alto poder aquisitivo.
No Brasil, isso significa discutir a interface entre a recomendação da Unesco e leis como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), além de atualizar normas em saúde, educação e relações de trabalho para contemplar dispositivos capazes de acessar e influenciar a mente.
E agora?
A pergunta “você já ouviu falar dos riscos relacionados à neurotecnologia?” ganha, a partir de agora, uma camada política e social clara: como garantir que o uso dessas tecnologias respeite a dignidade humana, em qualquer contexto?
O passo dado pela Unesco é um alerta e, ao mesmo tempo, um convite. Alerta para que governos, empresas, hospitais, escolas e desenvolvedores reconheçam que o cérebro não é apenas mais um “campo de dados” a ser explorado. E convite para que comunidades científicas, profissionais de saúde, juristas e a sociedade em geral participem ativamente da construção dessas regras.
Porque, se o século XXI promete ser também o século da mente conectada, é agora que se decide se essa conexão será sinônimo de liberdade e cura – ou de vigilância e controle.